domingo, 22 de julho de 2012

Resenha - Abismo Infinito - Horror Pessoal no Espaço

Eu fui a primeira a acordar da hibernação forçada nas câmaras criogênicas. No início, parecia estar tudo bem. Eu estava um pouco fraca e sonolenta, mas eu tinha sido avisada sobre esses efeitos colaterais. O Nomo da Argos era toda a companhia que eu tinha e, durante dias, eu me senti extremamente sozinha. Até que outros argonautas começaram a acordar.

Após algumas semanas, o tempo necessário para que nossos corpos se readaptassem ao estado desperto, começamos a estudar a Autoctônia-77. As sondas que mandávamos à superfície para recolher amostar do solo, água e do ar do planeta não tiveram nenhum problema, e em poucos dias tivemos resultados muito animadores. Assim, em alguns dias nós iríamos descer à superfície da Autoctônia para o primeiro reconhecimento.

Quando descemos, alguns dias depois, encontramos um planeta com clima parecido com a antiga Terra, com ar úmido e temperatura acima dos 25ºC. Nos primeiros dias recolhemos amostras de plantas e alguns pequenos animais e insetos para serem examinados em laboratório. Os problemas começaram no final da segunda semana, quando encontramos o que parecia ser uma pirâmide antiga e desgastada, coberta de plantas. Lá estavam as criaturas que levariam ao fim de nossa missão, ao fim de nossas vidas...

Abismo Infinito é um RPG de horror pessoal, de horror côsmico, inspirado por H.P. Lovercraft e filmes como "Solaris" e "2001: uma Odisséia no Espaço". Escrito por John Bogéia (o mesmo autor de Terra Devastada), o jogo invoca os participantes a encarnarem em astronautas de um futuro sinistro, quando a Terra está em seus últimos dias e todos os esforços humanos estão voltados para encontrar um planeta (ou planetas) capaz de ser colonizado. Mas o que eles encontram no universo escuro é o pior de seus pesadelos.

O livro é todo colorido, mas em um tom de azul escuro, como do céu ao anoitecer, e todo ilustrado com imagens bizarras de criaturas, monstros e pesadelos, bastante inspiradoras para o jogo. Ele tem 112 páginas em um formato quadrado (similar ao do The Mouse Guard RPG). A diagramação foi muito bem feita, com quadros ressaltando aspectos importantes do jogo e da ambientação, assim como fornecendo amostras narrativas para irmos entrando no clima do jogo.

Aliás, o clima do jogo é reforçado o tempo inteiro por esses quadros laterais e narrativas introduzidas no início de cada capítulo. Assim, eu posso dizer que a leitura do livro não é agradável, mas isso é, até mesmo, um elogio, já que a leitura do mesmo faz você se envolver bastante com a premissa do jogo. Se imaginando na situação dos Argonautas, longe de tudo e de todos, nos confins da escuridão do universos, cercado por seus mais íntimos pesadelos. É assustador de certa forma.

O livro começa com uma história em quadrinhos bem bizarra que mostra exatamente sobre o que é o jogo. A arte é bem legal e não parece aqueles comics americanas, o que para mim é um plus. A história é narrada pelo único sobrevivente de uma expedição a um planeta longínquo. Lá os argonautas (como são chamados os astronautas) encontram uma pirâmide antiga de uma civilização desaparecida e enlouquecem. A verdade e os mistérios do universo são demais para as mentes humanas e tudo entra em caos.

Logo depois, há uma espécie de contrato que os Argonautas (que serão os personagens dos jogadores) devem assinar para entrar na Organização Cronos, responsável pelas expedições que buscam um planeta colonizável. Ele tem três clausulas que deixa bem claro o trabalho do Argonauta, os riscos que ele pode correr e a irresponsabilidade da Cronos. Isso é tão legal que a Retropunk liberou o contrato em um PDF separado para quem quiser imprimir e dar aos seus jogadores assinarem antes de começar o jogo (eu fiz isso com os meus).

O primeiro capítulo é bem uma ambientação do mundo do Abismo Infinito, falando sobre cada aspecto do cenário e como são as coisas nesse mundo. A premissa do jogo é apresentada, explicando-se a situação do planeta Terra nessa época e o que está sendo feito para salvar a humanidade. Basicamente, o jogo se passa em um futuro distante (mas nem tanto) em que os recursos naturais de nosso planete estão a beira do esgotamento total. A população está inchada ao extremo e vivem em cidades claustrofóbicas. Milhões de pessoas passam fome por falta de recursos e para evitar conflitos entre as nações, criou-se um governo central, a União Mundial. Todos os países do mundo uniram seus recursos para tentar achar uma solução para o estado do planeta, surgindo assim, o Projeto Cronos. Esse projeto tem por objetivo financiar expedições espaciais pela Via Láctea, ou além, a fim de se encontrar um planeta em condições de ser colonizado pela raça humana. Graças a teoria da relatividade de Eistein, que foi aperfeiçoada pelos pesquisadores do Projeto Cronos, foram desenvolvidos motores de dobra, capazes de fazer as espaçonaves, chamadas de Argos, a viajarem mil vezes mais rápido que a luz. Dessa forma, os Argonautas (astronautas da um Argos) conseguem viajar a planetas muito distantes, que nunca foram explorados. Acontece que, para isso, eles ficam hibernando em câmaras criogênicas por dezenas de anos, e quando acordam não estão preparados para ver o que veem. Depois de anos dormindo, o consciente e o subconsciente dos argonautas ficam ativos ao mesmo tempo. Aquilo que veem se mistura com aquilo que sonham, que temem. O que presenciam a milhões de anos luz da Terra, sem ter como se comunicar com ninguém é demais para a mente humana. O Infinito do Universo não cabe na mente limitada deles. Dessa forma, tudo entra em colapso quando monstros, alienígenas e outros medos íntimos de cada um se manifestam para todos. O que acontece a partir daí, ninguém sabe, já que nenhuma expedição jamais retornou à Terra. O capítulo ainda apresenta algumas áreas da Via Láctea com características próprias e ambientes diferentes. Fala sobre alienígenas, civilizações perdidas e doenças espaciais. Um excelente auxílio a narradores.

Em seguida, o próximo capítulo trata de como é jogar o Abismo Infinito em si. Fala-se da proposta de jogo, que é um jogo de horror pessoal cósmico, e não aventuras no espaço. Os personagens não heróis em busca de tesouros e aventuras, mas astronautas, cientistas, engenheiros e outros especialistas a procura de um planeta habitável. Eles estão a milhares de anos luz de casa, longe da família, amigos e de suas casa, enfrentando o desconhecido e o infinito do espaço, preenchido por seus medos mais obscuros. É um jogo de horror, loucura e decadência, onde a única salvação pode ser a morte. O livro tenta apresentar esses aspectos do jogo de forma bem clara, para que os jogadores não tenham dúvida sobre o que trata o jogo. São apresentados conceitos sobre o que são RPGs, Jogos Narrativos, Horror, Terror e outras coisas. Fala-se sobre as influências para a criação do Abismo Infinito, sobre o subconsciente, pesadelos e o clima de horror pessoal inspirado no horror cósmico de H. P. Lovercraft. Ou seja é um capítulo fundamental para você entender do que se trata o jogo.

O terceiro capítulo trata das regras do jogo em si, começando pela criação do personagem. Esses, quando são criados, estão seu auge e vão decaindo, rumo a loucura no decorrer do jogo. Cada personagem possui um cargo na expedição espacial, e esses cargos determinam muitas das coisas que o personagem sabe fazer com precisão. Os cargos são: Astrogeólogo (especialista em estudo de rochas, terrenos, e ambiente de planetas); Cosmólogo (especialista em estudo dos efeitos espaciais, viajem espacial, buracos negros e outras coisas); Criptólogo (especialista em analise de criptogramas e linguagens alienígenas); Engenheiro (especialista em manutenção e construção de equipamentos de todos os tipos); Exobiólogo (especialista no estudo da fauna e flora extraterrestre); Médico (especialista em medicina, capaz de tratar os Argonautas de diversas formas); Navegador (especialista em traçar rotas, mapeamento e pilotagem de veículos); Psicólogo (especialista no estudo do comportamento humano e tratamento de pertubações mentais); Segurança (especialista em armas e estratégia de defesa da expedição); e Videomaker (responsável por registrar a expedição em foto, vídeo e em gravação holográfica). Outros cargos podem ser criados sem muito trabalho pelo grupo, caso achem necessário. Além disso, deve haver um capitão entre os navegadores, que pode ser um personagem dos jogadores ou não. Cada personagem deve ter também uma citação, que resumi os anseios e personalidades dele, algo como "ou você está do meu lado ou contra mim", "tudo que eu quero é ver minha filha de novo". Essas citações entram em jogo quando elas tiverem importância em alguma cena, dando vantagem ou desvantagem ao personagem.

Além disso, cada personagem tem Âncoras, que são aquilo que os mantém motivados e ligados na realidade. São coisas que se lembram e são apegados na terra. Podem ser familiares, amigos, objetos, lugares ou qualquer coisa que os jogadores consigam pensar que sejam importantes para seus personagens. Cada âncora que seu personagem possua faz com que você consiga rolar mais dados para realizar ações. No entanto, ao mesmo tempo, torna ele mais vulnerável às mazelas do espaço. Ele acaba tendo níveis maiores de Sonolência e Medo Particular. Esses dois atributos são quase como pontos de vidas mentais do personagem. Um representa o quanto o personagem consegue separar o que é real e o que é sonho ou pesadelo, e o outro representa o quanto de seus medos íntimos já se manifesta na mente do personagem e ao seu redor. Há valores permanentes desses atributos (traumas) e temporários (estresse). Caso qualquer um dos dois atributos chegue ao máximo, o personagem sucumbe psicologicamente e vai perdendo suas ligações com o mundo real, suas âncoras, se tornando cada vez mais fraco e perdido.

Mas como os personagens vão ganhando esses pontos de Medo Particular e Sonolência? Bem, no espaço, longe de casa, talvez por causa de efeitos colaterais da hibernação criogênica ou talvez pela influência de forças cósmicas inexplicáveis a realidade, os sonhos e os pesadelos se misturam. Assim, quando o personagem entrar em contato com algo onírico, vindo de um sonho, ele começa a acumular estresse de Sonolência. Da mesma forma, quando entra em contato com criaturas sobrenaturais, vindas do pesadelo deles ou de outros, começa a acumular estresse de Medo. Não tem muita escapatória mesmo. Você pode enfrentar e lutar contra essas coisas, mas o jogo é um tanto fatalista e o destino dos personagens é escuro como o espaço. A quantidade de pontos de estresse varia de acordo com a situação e julgamento do mestre, ou podem ser rolados (método que eu usei sempre que não tinha certeza se deveria ser alto ou baixo), e varia de 1 a 6 pontos. Há ainda, a questão de saúde, medida pelos pontos de ferimento. No Abismo Infinito, o que conta para causar esse dano não é a forma, mas a intenção do ataque, e mesmo em um mundo de sonhos e alucinações, os ferimentos são fatais.

O capítulo segue explicando sobre as cenas da história e resolução de ações. Como esse é um jogo de horror pessoal, a narrativa é compartilhada, de certa forma, com os jogadores. O mestre é quem propões os conflitos e insere desafios, mas é basicamente os jogadores que narram as cenas e podem criar seus próprios problemas para enriquecer a história. Afinal, são eles que vão conhecer melhor seus personagens. Há, portanto, um rodízio de cenas entre os jogadores, mas nada impede que hajam cenas em que todos, ou parte de todos, passam participar juntos, já que o sonho e pesadelo deles pode ser visto pelos outros. A resolução das ações e cenas é feito de forma narrativa e abstrata. Se ficar claro e fizer sentido na história, os dados não precisam ser jogados. Caso a ação ou a cena tenha um desfecho dúbio ou ambíguo e que seja interessante saber se o personagem foi bem sucedido ou não, o narrador escolhe uma dificuldade (geralmente entre 3 e 18) e o jogador rola um número de dados que depende de suas âncoras (variando de 1 a 3 d6) e das vantagens e desvantagens que pode ter na situação.

Em seguida, fala-se das manifestações dos medos dos personagens, o que elas são capazes de fazer e como elas aparecem. Tudo é bastante genérico para deixar que cada um crie suas próprias manifestações, embora os efeitos mecânicos sejam bem parecidos. O capítulo termina com uma explicação sobre os efeitos no jogo de fenômenos espaciais, sequelas da hibernação criogênica, regiões perigosas da galáxia, doenças e criaturas extra-terrestre o os robôs e computadores das naves.

O quarto e último capítulo do livro é dedicado ao Mestre do Espaço (o narrador do jogo). Ele é como muitos capítulos dedicados a mestres de outros jogos, ensinando o papel do narrador, que é de ser um arbitro justo em relação as regras e um facilitador da história. Há uma série de dicas sutis que fazem a diferença para o estilo de jogo que se propões o Abismo Infinito, como não descrever com mínimos detalhes tudo, deixar algumas descrições bem vagas, principalmente nas manifestações de Medo, a fim de deixara  imaginação dos jogadores formarem a imagem que quiserem. Fala-se sobre um Acordo de Grupo, que é algo ser discutidos por todos os participantes da mesa antes de começar, para decidirem o que querem explorar no jogo, até onde querem ir e para que todos entendam sobre o que é o jogo. O capítulo trata, então, da estrutura das histórias contadas no Abismo Infinito. As histórias, possuem três fazes, o Despertar, o Pesadelo, e a Redenção. Na primeira, os Argonautas acordam de sua hibernação criogênica e começam a interagir com o novo mundo bizarro onde estão. As coisas são meio confusas, sonho e realidade se misturando aos poucos. Depois, no Pesadelo, é quando as coisas se complicam e os medos dos personagens se manifestam mais fortemente. Por fim, na Redenção, é quando os personagens tentam enfrentar e vencer seus medos de uma vez por todas para, enfim, descansar em paz.

Por causa do aspecto tão particular dos medos, sonhos, ambições e âncoras de cada personagem, as histórias de Abismo Infinito são bastante complicadas de se preparar com antecedência. Elas devem ser criadas em conjunto com os jogadores, especialmente formulada para cada personagem. O que o Mestre do Espaço prepara é um cenário, um ambiente, e com base nos personagens criados pelos jogadores, ele pode bolar desafios e alucinações que sejam mais condizentes para cada um. Dá para ver que o jogo precisa muito de maturidade e colaboração dos jogadores para dar certo.

Por fim, o livro trás um cenário pronto de amostra para ser jogado. Mas é só isso, um cenário. Como ele vai ser jogado, que desafios os Argonautas vão enfrentar vai depender exclusivamente deles. Para ser sincero, esse é um dos pouquíssimos jogos de horror pessoal que realmente são de horror pessoal. Ele me fez repensar bastante outros jogos que se dizem de horror.

Enfim, o jogo é um verdadeiro RPG de horror. Não é um tipo de jogo que vai agradar a qualquer um, e isso é bom, porque vai agradar muito a quem gosta desse gênero. Suas regras são bastante simples e focadas na narrativa e não nos feitos dos personagens, o que acho uma excelente escolha para esse tipo de jogo.

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